Pequim é Aqui II - Kirsty Coventry na fila do pão
Maios biônicos e diferenças descomunais de musculaturas. Analisando a natação nestas Olimpíadas, percebo um esporte escravo da tecnologia e dividido em castas. Uma civilização de mutantes, quase igual aquela novela da Record.
Mas nem tudo está perdido, um pouco de charme ainda resiste, com pessoas/ atletas que se parecem como nós - e, entre essas pessoas, ninguém tem tanto a minha torcida quanto a “golden girl” do terceiro mundo.
Não apenas por ser do terceiro mundo e muito menos por ser “golden girl” - até porque o apelido é acima de tudo uma forma carinhosa de reconhecer a competência de uma superatleta (ninguém pensou em mudá-lo quando ela foi prata em duas provas nas quais era favorita destacada).
Kirsty Coventry veio ao mundo para causar paradoxos, contrariar ideologias fortes em seu país e mesmo assim fazê-lo feliz e orgulhoso. Não imagino nada mais valioso do que isso numa Olimpíada.
Quando ela nasceu, branca, no Zimbábue, aquela região vinha de uma sangrenta guerra racial. Tinha a independência reconhecida havia apenas três anos, e era governada pelo então herói negro Robert Mugabe (o mesmo Robert que, hoje, quase trinta anos depois, se mantém no poder e é um dos mais contestados chefes de estado do mundo).
A independência da Rodésia do Sul foi bacana, teve show do Bob Marley na capital Harare e uma simbólica mudança de nome (Zimbábue = “Casa de Pedra”, em um dialeto local).
A nova nação, historicamente comandada pela minoria branca em um regime de segregação semelhante ao apartheid sul-africano, enfim estava nas mãos da maioria de seu povo.
No entanto, assim que acabou a festa, veio à tona o ressentimento histórico dos zimbabuanos negros contra os seus compatriotas de origem européia. Infelizmente eles precisavam se vingar para igualar as coisas... É sempre assim.
Uma reforma agrária ilegal expulsou os brancos fazendeiros de suas terras. Nas cidades, eles passaram a viver em bairros homogêneos, sem significativa participação na política. Foi nesse cenário discriminatório que Coventry cresceu, e, assim que descoberta como um fenômeno da natação, mudou-se para os Estados Unidos - deixando para trás seus parentes, proprietários de uma indústria química.
Vivendo no exterior, ela se acostumou a receber notícias ruins da terra natal: recordes de fome (num antigo modelo de prosperidade para a África), corrupção eleitoral e o estabelecimento da ditadura de Mugabe (que, por exemplo, venceu a última eleição na marra, forçando violentamente a desistência da oposição).
Tudo isso agravado pela atual inflação, uma das maiores da história da humanidade, já beirando os 10 milhões por cento.
Qualquer fila pra comprar pão no Zimbábue é caótica [para quem quiser se aprofundar nesse drama, sugiro a leitura do trecho zimbabuano do blog "Pé na África", do jornalista Fabio Zanini, referência para boa parte do conteúdo deste post]
O orgulho esportivo do Zimbábue, já outrora representado por uma seleção de críquete tradicional, o goleiro Bruce Grobbellar (um dos maiores ídolos da história do Liverpool) e alguns tenistas razoáveis, nunca esteve tão carente por feitos olímpicos da maior atleta de sua história.
Coventry, desde as 3 medalhas conquistadas em Atenas-2004 (1 ouro, 1 prata e 1 bronze) é uma figura extremamente amada, capaz de mobilizar brancos e negros no sentimento de na(ta)ção.
A prova está nos incansáveis elogios dirigidos à nadadora pela imprensa africana, até na manchete daqueles jornais estatais cuja linha editorial é retratar os brancos como vilões de todas as desgraças do continente.
Ela é talentosa, sorridente e batalhadora. Mas gosto ainda mais dela quando penso no que ela representa, além do muito que ela já é. Ontem, enfim, veio uma medalha de ouro, na prova dos 200m costas, e o hino do Zimbábue tocou em Pequim. Foram recompensados todos os que nunca deixaram de acreditar na “golden girl” (apelido, aliás, dado pelo tirano Robert Mugabe... Deixa pra lá...)
Queria mesmo era encerrar o post com um vídeo mostrando a voz emocionada da narração do Galvão Bueno zimbabuano, no momento do ouro.
Não sei se esse registro chegará às minhas mãos um dia, mas espero que tudo tenha sido mais ou menos da maneira que eu imagino...
Na falta dele, uma foto emblemática dela:
E, ah, claro. Valeu também, César Ciello!
Mas o conterrâneo do Diego Tardelli era apenas a minha terceira pauta. Antes, ainda gostaria de ter falado um pouco sobre o nadador da Papua Nova-Guiné, Ryan Pini, que disputou a final olímpica na prova dos 100 m borboleta (ou “100 m mariposa”, como se diz em Portugal).