sábado, agosto 16, 2008

Pequim é Aqui II - Kirsty Coventry na fila do pão

Maios biônicos e diferenças descomunais de musculaturas. Analisando a natação nestas Olimpíadas, percebo um esporte escravo da tecnologia e dividido em castas. Uma civilização de mutantes, quase igual aquela novela da Record. Mas nem tudo está perdido, um pouco de charme ainda resiste, com pessoas/ atletas que se parecem como nós - e, entre essas pessoas, ninguém tem tanto a minha torcida quanto a “golden girl” do terceiro mundo. 

Não apenas por ser do terceiro mundo e muito menos por ser “golden girl” - até porque o apelido é acima de tudo uma forma carinhosa de reconhecer a competência de uma superatleta (ninguém pensou em mudá-lo quando ela foi prata em duas provas nas quais era favorita destacada). 

 Kirsty Coventry veio ao mundo para causar paradoxos, contrariar ideologias fortes em seu país e mesmo assim fazê-lo feliz e orgulhoso. Não imagino nada mais valioso do que isso numa Olimpíada. 

Quando ela nasceu, branca, no Zimbábue, aquela região vinha de uma sangrenta guerra racial. Tinha a independência reconhecida havia apenas três anos, e era governada pelo então herói negro Robert Mugabe (o mesmo Robert que, hoje, quase trinta anos depois, se mantém no poder e é um dos mais contestados chefes de estado do mundo). 

 A independência da Rodésia do Sul foi bacana, teve show do Bob Marley na capital Harare e uma simbólica mudança de nome (Zimbábue = “Casa de Pedra”, em um dialeto local). 

A nova nação, historicamente comandada pela minoria branca em um regime de segregação semelhante ao apartheid sul-africano, enfim estava nas mãos da maioria de seu povo. No entanto, assim que acabou a festa, veio à tona o ressentimento histórico dos zimbabuanos negros contra os seus compatriotas de origem européia. Infelizmente eles precisavam se vingar para igualar as coisas... É sempre assim. 

 Uma reforma agrária ilegal expulsou os brancos fazendeiros de suas terras. Nas cidades, eles passaram a viver em bairros homogêneos, sem significativa participação na política. Foi nesse cenário discriminatório que Coventry cresceu, e, assim que descoberta como um fenômeno da natação, mudou-se para os Estados Unidos - deixando para trás seus parentes, proprietários de uma indústria química. 

Vivendo no exterior, ela se acostumou a receber notícias ruins da terra natal: recordes de fome (num antigo modelo de prosperidade para a África), corrupção eleitoral e o estabelecimento da ditadura de Mugabe (que, por exemplo, venceu a última eleição na marra, forçando violentamente a desistência da oposição). Tudo isso agravado pela atual inflação, uma das maiores da história da humanidade, já beirando os 10 milhões por cento. 

Qualquer fila pra comprar pão no Zimbábue é caótica [para quem quiser se aprofundar nesse drama, sugiro a leitura do trecho zimbabuano do blog "Pé na África", do jornalista Fabio Zanini, referência para boa parte do conteúdo deste post] 

 O orgulho esportivo do Zimbábue, já outrora representado por uma seleção de críquete tradicional, o goleiro Bruce Grobbellar (um dos maiores ídolos da história do Liverpool) e alguns tenistas razoáveis, nunca esteve tão carente por feitos olímpicos da maior atleta de sua história. Coventry, desde as 3 medalhas conquistadas em Atenas-2004 (1 ouro, 1 prata e 1 bronze) é uma figura extremamente amada, capaz de mobilizar brancos e negros no sentimento de na(ta)ção. 

A prova está nos incansáveis elogios dirigidos à nadadora pela imprensa africana, até na manchete daqueles jornais estatais cuja linha editorial é retratar os brancos como vilões de todas as desgraças do continente. 

 Ela é talentosa, sorridente e batalhadora. Mas gosto ainda mais dela quando penso no que ela representa, além do muito que ela já é. Ontem, enfim, veio uma medalha de ouro, na prova dos 200m costas, e o hino do Zimbábue tocou em Pequim. Foram recompensados todos os que nunca deixaram de acreditar na “golden girl” (apelido, aliás, dado pelo tirano Robert Mugabe... Deixa pra lá...) 

 Queria mesmo era encerrar o post com um vídeo mostrando a voz emocionada da narração do Galvão Bueno zimbabuano, no momento do ouro. Não sei se esse registro chegará às minhas mãos um dia, mas espero que tudo tenha sido mais ou menos da maneira que eu imagino... 

 Na falta dele, uma foto emblemática dela: E, ah, claro. Valeu também, César Ciello! Mas o conterrâneo do Diego Tardelli era apenas a minha terceira pauta. Antes, ainda gostaria de ter falado um pouco sobre o nadador da Papua Nova-Guiné, Ryan Pini, que disputou a final olímpica na prova dos 100 m borboleta (ou “100 m mariposa”, como se diz em Portugal).

quinta-feira, agosto 14, 2008

Pequim é Aqui I - Espírito Olímpico

Incrível o que a Olimpíada fez com o meu organismo. Acho que é a primeira vez na vida em que tenho uma sequência de noites dormindo mal e, ainda assim, mantenho um aspecto aparentemente saudável durante o dia. Suspeito que algum hormônio ligado à euforia tenha feito bem para a minha pele.

Como as competições televisionadas não me permitem desconcentração pela madrugada, é mais ou menos lá pelas cinco da tarde – em pleno expediente de trabalho – que me bate uma moleza. Mas acho que conseguirei conviver bem com isso. É só até o fim do mês.

Após uma semana de Jogos já posso dizer que eles superaram as minhas expectativas. E não falo apenas dos recordes na natação ou da medalha de Togo na canoagem (do tipo de coisa que eu daria manchete se fosse dono de um jornal e não precisasse vendê-lo). O que também me emociona nessa época quadrienal é a empolgação boba que toma conta de mim, pior do que toque engraçadinho de celular.

O "espírito olímpico" me faz criança, mas de um jeito diferente do "espírito de Natal". De repente eu volto a ser aquele garotinho fascinado com o primeiro Atlas, que acha impossível Burkina Faso ser um país com tantas dificuldades, considerando que a bandeira é tão legal. E me dou conta mais uma vez do quanto eu sempre serei um moleque obcecado por esportes, independentemente do número de livros de ciência política que leia para a faculdade.

Não adianta disfarçar, tentar não ficar estigmatizado. Todo mundo é fanático por esportes nas Olimpíadas, mas nem por isso vão deixar de achar estranho se eu contar que não consigo dormir em paz pensando na sequência de lutas dos brasileiros do dia no judô (e isso porque judô está longe de ser a minha modalidade favorita).

Não me orgulha. Não comentaria sobre isso com uma garota, por exemplo - por mais sem assunto que estivesse.

Achei que nessa Olimpíada seria diferente, dadas as minhas ocupações, responsabilidades, experiências de vida... Todas essas coisas que agora só me fazem ser ainda mais grato pelo sabor de uma Olimpíada aos vinte anos.

Também pensei que o horário atrapalharia muito, mas já percebi que não.

Vejo pessoas mais velhas falando que não sentem vontade de acompanhar e estão achando Pequim sem graça. Ah, francamente, isso pra mim não é análise séria e nem nostalgia, é despeito mesmo. Coisa de espírito de porco procurando defeitos nos corpos de outras pessoas numa tarde na piscina.

Vamos curtir a piscina!

Eu também tentei ficar aquém da Olimpíada dentro das minhas pretensões do que poderia significar maturidade. Ainda bem que me dei conta a tempo dessa bobagem. Uma pena que não exista álbum de figurinhas das Olimpíadas, pois precisava de algum produto desse tipo para afirmar meus interesses e prioridades no momento...

O aprendizado do novo estágio, o começo do semestre mais difícil da faculdade, os outros papos cotidianos ou até mesmo a campanha de vacinação. Tudo isso é menos interessante do que uma prova de adestramento no hipismo.